A sigla, a identidade e os direitos LGBTI+ : tensões e urgências no movimento
A luta pelos direitos da população LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas intersexo, não-binárias, queer, assexuais, pansexuais etc.) no Brasil — e no mundo — sempre envolveu perguntas sobre quem está incluído, que nome damos, quem fala por quem, e quais devem ser os focos. A sigla cresceu, outras letras foram adicionadas, identidades foram ganhando visibilidade. Mas à medida que isso acontece, surgem tensões e questionamentos: até que ponto a ampliação da sigla fortalece a luta ou a torna mais confusa? O que deve vir primeiro — a visibilidade de identidades específicas ou a priorização dos direitos humanos?
Aqui eu tentei explorar essas questões, apresentar dados, abordar quem são as pessoas desse movimento, e criar uma oportunidade de olharmos os fatos e focar em direitos humanos sem apagar especificidades, e claro, ouvir a sua percepção, opinião e contribuição.
Um pouco de história
O movimento pelos direitos LGBTI+ tem marcos internacionais, destacadamente os levantes de Stonewall (Nova York, 1969), quando LGBT+ pessoas — em especial drag queens, trans, gays e lésbicas — resistiram às batidas policiais num bar, a Stonewall Inn. Esse evento serve como símbolo do movimento contra a criminalização e marginalização desta população.
- No Brasil, as travestis e pessoas trans têm papel central: foram historicamente as mais visibilizadas na repressão e na maior vulnerabilidade, mas também da maior coragem coletiva ao se exporem, criarem redes de apoio, associações como a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e movimentos de base. https://antrabrasil.org/
- Grupos como o Grupo Gay da Bahia (GGB) fundado em 1980, marcaram os primeiros levantamentos sobre mortes por homofobia/transfobia no Brasil. A pesquisa histórica desses grupos mostra que, há décadas, travestis e mulheres trans morrem em número desproporcional. https://grupogaydabahia.com.br/
- O Fórum de empresas e direitos LGBTI+ criado em março de 2013 que é um movimento empresarial com atuação permanente reunindo grandes empresas em torno de 10 Compromissos com a promoção dos direitos humanos LGBTI+, que nasce com o propósito de articular empresas em torno do compromisso com o respeito e a promoção aos direitos humanos LGBTI+ no ambiente empresarial e na sociedade. https://www.forumempresaslgbt.com/o-forum
Personagens históricos
- Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera (EUA): símbolos internacionais do protagonismo trans e travesti em Stonewall.
- Claudia Wonder (Brasil): travesti, artista e ativista nos anos 1980 e 1990, desafiou preconceitos ao unir performance e militância.
- Keila Simpson: liderança travesti brasileira, presidente da ANTRA, articuladora política e referência internacional.
- Luiz Mott: antropólogo, fundador do GGB, responsável por sistematizar dados de violência contra LGBTI+.
- Erica Malunguinho: primeira deputada estadual trans eleita no Brasil (SP, 2018), criadora do espaço Aparelha Luzia, que articula cultura negra e LGBTI+.
Esses são alguns dos nomes e mostram a pluralidade de vozes e identidades que compõem a luta.
As letras — por que cada identificação importa
A sigla LGBTI+ (ou versões alargadas como LGBTQIA+, LGBTQIAP+, etc.) busca dar nome e visibilidade às identidades que historicamente foram apagadas, estigmatizadas ou criminalizadas. Algumas das letras:
- L, G, B — lésbica, gay, bissexual: orientação sexual.
- T — travestis / transexuais / pessoas trans: identidade de gênero.
- I — intersexo: pessoas cujas características sexuais biológicas (genitais, cromossomos, hormônios) não se encaixam nas normas típicas masculino/feminino. UOL+2CNN Brasil+2
- Q — queer: termo guarda múltiplos sentidos, podendo abarcar identidades que rompem com normas de gênero ou sexualidade, fluidez, etc. JC+1
- A — assexual: pessoas que sentem pouca ou nenhuma atração sexual; ou outras versões incluem “aliados” ou “aromânticos”. JC+1
- P — pansexual: atração por pessoas independentemente do gênero. JC+1
- O “+” serve para abarcar identidades não listadas explicitamente, aquelas em constante afirmação, fluídas ou que emergem como novas nomenclaturas. CNN Brasil+2UOL+2
Cada letra traz demandas próprias: tratamento médico, uso de nome social; justiça no registro civil; acesso ao mercado de trabalho; segurança contra violência; percepção legal da identidade; e muitas vezes enfrentamento duplo ou triplo de discriminação (por gênero, por orientação sexual, por raça etc.).
Realidade de violências e exclusão no Brasil
Os dados ajudam a mostrar por que a especificidade importa, e por que existe urgência em focar nos direitos humanos e não somente na visibilidade de nichos:
- Em 2022, foram registradas 273 mortes violentas de pessoas LGBTI+ no Brasil. Dessas, 228 foram homicídios (≈ 83,5%). Agência Brasil+1
- Em 2023, o número foi de 230 mortes violentas, sendo 184 assassinatos, 18 suicídios e 28 por outras causas. Agência Brasil+1
- As travestis e mulheres trans permanecem como os grupos mais vulneráveis: em 2023, entre as vítimas, a maioria (142 de 230) era de pessoas transsexuais, especialmente mulheres trans e travestis. UOL Notícias+1
- Há forte subnotificação: muitos casos não são reconhecidos oficialmente como motivados por LGBTIfobia, muitas vítimas não têm sua orientação ou identidade divulgada ou reconhecida. Agência Brasil+1
- Em termos racial-espacial, muitos dos mortos são pessoas pretas ou pardas, jovens (20-39 anos), e estados como São Paulo, Ceará, Alagoas, Amazonas se destacam tanto em número absoluto quanto proporcionalmente. Agência Brasil+2Agência Brasil+2
- Nos registros de denúncias mais gerais, o “Disque 100” e outras instâncias mostram que em 2024 houve mais de 5.700 denúncias até setembro, um aumento significativo em relação a anos anteriores. Agência Brasil+1
Sigla vs. foco nos direitos
A partir das experiências pessoais e das corrdos movimentos sociais e o ativismo, três grandes pontos merecem destaque:
- Visibilidade / identidade vs. universalismo / direitos comuns
- Identidades específicas exigem reconhecimento porque a violação de direitos costuma segregar: uma mulher lésbica pode enfrentar discriminação diferente daquela que enfrenta um homem gay; uma pessoa trans enfrenta desafios legais e de saúde que uma pessoa gay pode não ter
- Por outro lado, existe o argumento de que colocar a ênfase excessiva em nomenclaturas, siglas, identidades dificulta mobilizar direitos comuns, cria divisões ou dispersa recursos.
Sobrecarga simbólica
- Muitas pessoas sentem que a sigla está ficando muito longa ou difícil de acompanhar. Alguns ativistas opinam que versões extensas demais podem perder força em campanhas práticas.
- Outra questão: quem decide quais letras entram, quais saem? Como isso reflete poder no movimento? Há casos de identidades que afirmam não querer certas letras ou querem que suas demandas apareçam de outras formas.
Políticas públicas e obrigações legais
- O Estado geralmente lida melhor com categorias definidas legalmente (por exemplo, “transexual”, “travesti”, “homossexual”) quando precisa legislar sobre reconhecimento de gênero, nome social, cotas, proteção contra violência, etc. Categorias que ainda têm pouco reconhecimento legal ou social enfrentam atrasos ou omissões.
- Estratégias de direitos humanos exigem “universalidade”: todos nascidos livres e iguais, conforme Declaração de Direitos Humanos. Mas a prática revela que “igualdade formal” não é suficiente quando há desigualdade material, invisibilização, estigma, violência específica.
Exemplos de desafios
- Nome social, identidade de gênero: Pessoas trans e travestis lutam pelo reconhecimento do nome social (nome pelo qual se identificam) em documentos públicos, em escolas, em carteiras de identidade etc. Em muitos casos isso exige legislação específica ou decisões judiciais
- Violência e segurança: o número de assassinatos, suicídios e agressões contra pessoas trans/travestis é extremamente alto. Para elas, o risco é corporal e muitas vezes invisível.
- Saúde: acesso a serviços de saúde específicos, hormonioterapia, cirurgias de transição, acompanhamento psicológico, e o tratamento por profissionais de saúde que respeitem identidade de gênero.
- Emprego, renda, educação: discriminação, exclusão e desemprego afetam de forma desproporcional pessoas trans/travestis e outras identidades minoritárias.
Os direitos humanos
Considerando os dilemas levantados, algumas pistas para equilibrar visibilidade de identidades e foco em direitos:
- Priorizar políticas públicas que garantam direitos mínimos para todos — por exemplo, leis que protejam contra discriminação no trabalho, na saúde, no sistema judicial, segurança pública, acesso ao serviço público. Garantir que todos tenham liberdade, dignidade e proteção.
- Reconhecer especificidades dentro dessas políticas — entendendo que identidades diferentes têm violências e necessidades particulares. Exemplo: travestis e mulheres trans têm taxas de assassinato muito mais altas; pessoas intersexo podem precisar de cuidados médicos específicos; pessoas não-binárias têm desafios no reconhecimento legal.
- Uso da sigla como instrumento simbólico, não fim em si mesmo — ela serve para visibilidade, para que cada grupo tenha voz. Mas não pode se tornar um obstáculo, uma espécie de “palco” pelo qual se mede autenticidade, ou por onde se isola uns dos outros.
- Dados como ferramenta de responsabilização — mais estatísticas com recorte por identidade de gênero, orientação sexual, raça, região, etc. A subnotificação continua sendo um problema grave. Dados oficiais (como os do IBGE, ministérios, secretarias de segurança pública) precisam incluir variáveis que permitam identificar quando um ato de violência foi motivado por LGBTIfobia.
- Educação e cultura — além das leis, transformar o imaginário social, combater preconceitos enraizados, incluir discussão de gênero e sexualidade nas escolas, nas empresas, na polícia, saúde, educação para atendimento respeitoso, etc.
Conclusão
O movimento LGBTI+ brasileiro é fruto da coragem de travestis e pessoas marginalizadas que não tiveram escolha a não ser resistir. A sigla é símbolo, mas não pode ser fim em si mesma. O centro da luta continua sendo o que já estava na Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 1º:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.”
Num país que ainda lidera índices de violência contra pessoas LGBTI+, essa frase não é apenas um ideal: é uma urgência política e humanitária.