Falamos muito sobre preconceito, mas pouco sobre a cultura estrutural que moldou, por gerações, a vida das pessoas gays. Essa cultura não é apenas um conjunto de normas sociais; é um sistema invisível de negação que roubou algo essencial: a infância e a juventude afetiva.
Enquanto meninos e meninas heterossexuais aprendiam o ritual do afeto desde cedo — o “primeiro beijo na praça”, o namoro no portão da escola, a mão dada no shopping — para nós, gays, esses ritos foram negados. A infância gay foi roubada. Não tivemos o direito de experimentar o amor livre nas fases naturais da vida. Como escreveu Michel Foucault, “a repressão não é apenas silêncio, mas também a produção de uma cultura inteira baseada no não-dito”.
Pesquisas da American Psychological Association (APA, 2020) indicam que, em média, jovens heterossexuais iniciam experiências de namoro por volta dos 13 a 15 anos. Já para pessoas LGBT+, a iniciação afetiva costuma atrasar quase uma década, surgindo em média após os 22 a 23 anos.
Esse abismo não é biológico, mas cultural, reflexo de uma sociedade que empurrou a homossexualidade para os espaços clandestinos, os “darks”, os bares escondidos, os encontros rápidos, marcados pelo medo da descoberta.
Assim, enquanto a juventude hetero treinava o afeto — aprendendo a paquerar, a cuidar, a esperar — a juventude gay foi treinada na pressa. O afeto foi negado, o desejo foi permitido apenas no subterrâneo. O prazer substituiu o carinho. O sexo urgente ocupou o lugar da intimidade emocional.
Esse descompasso criou uma geração de adultos com vasto repertório sexual, mas muitas vezes com pouca experiência em intimidade emocional.
A psicóloga clínica Viviane Angélica Silva (2019) afirma que “a ausência do treino afetivo durante a adolescência gera adultos que associam o amor ao risco e a intimidade à dor”.
Isso explica por que, ainda hoje, tantos de nós descobrimos o “primeiro amor” apenas aos 30 anos — muitas vezes transformado em meme, mas que, na verdade, expõe uma ferida coletiva.
Tudo o que foi negado não desapareceu. Apenas se transformou. Ressurgiu como urgência, como desejo codificado em segredo. Criamos uma cultura própria, moldada pela sobrevivência, pela clandestinidade e pela pressa. Essa é a cultura estrutural que herdamos e ainda reproduzimos.
Mas há uma oportunidade diante de nós: reconstruir aquilo que nos foi roubado. Permitir-se viver o afeto sem medo. Ensinar às novas gerações que o amor não precisa ser clandestino, que a intimidade pode ser livre, lenta, cuidadosa.
A pergunta que fica é: estamos prontos para reaprender o afeto, ou ainda estamos com pressa demais para amar?